DESCRIÇÃO DO PROFESSOR ANTÔNIO ROBERTO
Cozinhou o juízo e caducou cedo...
Professor Antônio Roberto
A primeira vez que eu encontrei o Curupira-Caipora faz mais de meio século.
Vinha de uma propriedade de meu pai chamada Ema, a uns quatro quilômetros
de Nova Russas.
Com muita sede e num sol quente
de após o meio dia, arriei no chão o saco de espigas de milho verde, melancias
e jerimuns que trazia nas costas. Queria aproveitar a sombra de um grande
angico para descansar um pouco.
Por detrás de uma moita de
mufumbo ele saiu de repente. Cabelos compridos, lisos e hirtos. Cabeça grande,
olhos redondos e boca cheia de dentes irregulares. Os pés, os pés me fizeram
subir um arrepio, eram virados para trás, grandes e maltratados. Não era alto,
mas era forte e aparentava muita saúde. A roupa era uma tanga que só
cobria o sexo. Na mão direita portava um cipó de uma planta espinhosa, tal de
japecanga, com a qual açoitava a meninada, assim
diziam.
Os olhos em brasa competiam com o
sorriso na desdenhes. Senti sua enorme superioridade. Atrapalhado pelo imenso
medo, procurei nos bolsos os cordões e a “péia” de fumo. Era crença do povo que
estas coisas lhe agradavam e o acalmavam.
Já sei! Já sei! Falou com uma
voz rouca e vagarosa. Não trouxe porque também é daqueles que não acreditavam
que eu existia! Mas não esqueceu a baladeira, com que você mata meus amigos
pássaros, preás e soins. Você é daqueles iguais aos seus antepassados e outros
que depois de matar os índios, cortaram e queimaram minhas melhores arvores,
além de dizimarem os animais e pássaros das matas. Comeram meus queixadas
e hoje é difícil eu arranjar um caititu para andar em cima.
Cada dia que passa vocês destroem. Não plantam
senão o de interesse comercial. Um pajé, antes de morrer me disse: Haverá um
tempo que as matas e as águas lhes farão suprema falta. Eles pagarão e muito
caro!...
Neste momento o Caipora inflamou-se, esperei
que fosse me maltratar, tentei falar. “Seu Caipora”, “Seu Caipora”... Ao
contrário, ele afastou-se, deu um assobio tão agudo que meus ouvidos quase
estouraram. Apareceu um enorme porco no qual ele montou e foi embora.
Tomei do saco e corri para a
estrada onde encontrei o Sr. Sales Mateus, nosso amigo que ia para Nova Russas
trabalhar no turno da tarde no ofício de ferreiro. Aos trancos e
barrancos consegui contar-lhe o encontro. Ouviu-me com atenção. Pediu o pesado
saco e o colocou na “lua” da sela.
Continuamos
juntos e do alto do seu jegue bem arreado eu o ouvi murmurar: “Também pudera, é
da raça de Timbó, que tem a cabeça fraca”. “Vou falar para o Dr. Osvaldo, num
sol quente deste o juízo do menino cozinhou”!
Passado todo este tempo, vivido a
maior parte em Fortaleza, aposentei-me como professor da Universidade Federal
do Ceará e fiquei definitivamente em Nova Russas. Como funcionário
público municipal, pedi lotação como professor de Educação Física no Distrito
de Nova Betânia, onde passo a maioria dos fins de semana, na fazenda de
parentes.
Certa manhã de domingo de um mês
“br-o-bro”, lá pelas dez horas, fui a um angico próximo tirar resina. Esta
secreção é muita rica em sais minerais e dizem, com propriedades medicinais
maravilhosas. Eu gosto muito dela. Não encontrando perto de casa fui andando em
ziguezague, de angico em angico, e nada encontrando. Já tinha andado bastante
na caatinga e me dei conta que estava longe de casa.
Desta vez eu não me assustei, ele
apareceu com naturalidade, sem arrogância e até me cumprimentou: Olá, disse,
não precisa puxar o facão, eu estou somente a passear neste deserto. Você está
esbaforido e não tem uma sombra para descansar! Também não encontra mais
jandaíras, jatis, maracujás, canapuns e carás para arrancar e comer. Os olhos
d'água secaram e os bichos sumiram mais ainda. Esbocei umas palavras, mas ele
continuou: Aprendi muito sobre vocês, hoje sei distinguir entre os de boa fé e
os que não têm princípios. Sou um andarilho por todo este País e venho
lhe pedir para fazer parte dentre os que querem salvar o que resta das matas,
rios e animais. Ainda há tempo.
Mas, mas como se não sou mais que
um pobre coitado na imensidão da destruição.
Faça por você, argumentou ele. Não
desmate. Já será muito, Você está vendo aquelas carnaúbas onde
houve desmatamento e fogo? Sim respondi. Elas não queimaram. Lá
cortaram uns angicos, nos seus brolhos deixei um presente para você. Novamente
assobiou e o porco enorme apareceu. Deu com a mão, montou e desapareceu num
relance.
Fui ao local, era uma capoeira de
uns três anos. Nos brolhos tinha tanta resina que somente da minha altura para
baixo enchi minha sacola e sobrou muita. Além da que comi...
Dirigi-me para casa por outro
caminho procurando em todos os outros angicos e nada de resina encontrei. Então
me convenci que ele governa as arvores. Ao me aproximar de casa ouvi gritos,
buzina de carro, um alarido geral. A mulher, as filhas, amigos. Todos estavam
desesperados com meu sumiço de horas no mato. Fui muito criticado por sair
sozinho. Fiquei calado, na minha. Contar o acontecido, nem pensar...
Da primeira vez acharam que meu
juízo tinha cozinhado. Agora, no mínimo iriam dizer: Seu Antônio está caducando
tão cedo!
*Antônio
Roberto Mendes Martins
- Mestre em
Física –
Professor
Universitário (UFC) - novarrussense – residente em Nova-Russas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário