CÁRMEN LÚCIA: QUEM É A MINISTRA QUE COMANDARÁ O STF PELOS PRÓXIMOS DOIS ANOS.
Sou de uma geração que lutou para eleger de presidentes de diretórios acadêmicos a prefeitos, governadores e presidentes.
Aos 62 anos, a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha,
que assume a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) em 12 de setembro, é
uma mineira de hábitos simples.
Ela não pinta os cabelos, usa tailleurs discretos, faz
questão de dirigir o próprio carro, um Astra, e costuma cumprimentar com aceno
simpático os funcionários que encontra nos corredores do tribunal.
Além de ser considerada bem preparada juridicamente
para os votos que relata, é tida como uma julgadora que evita debates
exacerbados e grandes discussões com os colegas durante os julgamentos.
Mas, contraditoriamente, gosta de proferir frases de
efeito e duras sobre o que pensa.
Por isso, assume em meio a dúvidas sobre como, de
fato, será o seu comportamento à frente da mais alta Corte do país.
Em tempos de julgamento das ações da Lava Jato, Cármen
Lúcia presidirá o STF justamente no ano em que completa 10 anos no tribunal.
Solteira, do tipo considerado “casado com o trabalho”,
estudiosa dos casos que relata e das novas jurisprudências, ela é defensora dos
direitos das mulheres e tem sido cautelosa em decisões que venham a representar
perdas para os trabalhadores.
Ao mesmo tempo em que tem várias características da
sua personalidade elogiadas por magistrados e operadores de direito, também é
vista por setores da advocacia, juristas e colegas como sinal de que os tempos
serão mais duros nos próximos dois anos, no STF.
Embora estes últimos admitam que, apesar da maior
rigidez, possam ser dias bem mais céleres no julgamento dos processos.
Numa das suas declarações mais polêmicas, proferida em
outubro passado, quando o STF autorizou a prisão do então senador Delcídio do
Amaral (sem partido), Cármen Lúcia mexeu com o brio de políticos diversos, o
que lhe rendeu protestos de cidadãos.
A ministra afirmou, numa frase longa, entre outras
palavras, que “na história recente da nossa pátria, houve um momento em que a
maioria de nós, brasileiros, acreditou no mote segundo o qual uma esperança
tinha vencido o medo.
Depois, nos deparamos com a Ação Penal 470 e
descobrimos que o cinismo tinha vencido aquela esperança. Agora parece se
constatar que o escárnio venceu o cinismo.
“O crime não vencerá a Justiça”.
Uma das manifestações mais emblemáticas foi a longa
carta encaminhada a ela pelo bispo dom Orvandil Moreira Barbosa, da diocese
Brasil Central, de Goiás, e professor universitário.
Dom Orvandil disse que “como cidadão e como povo me
sinto ofendido e agredido em minha esperança e em minha fé com essa sua fala,
para mim irônica e sem nenhuma relação com o mensalão da mídia, com muitos
casos dúbios e influenciados pela opinião publicada”. (…) “A senhora carregou
sobre a ironia sem nexo ao afirmar que ‘agora o escárnio venceu o cinismo’”.
Em outro trecho, ele afirmou:
“A minha ofensa também vem do fato de a senhora
misturar ironicamente fatos e valores sem nenhuma relação, sendo que a
esperança realmente venceu o medo e sempre vencerá as vilanias da classe
dominante, principalmente da rapinagem dos poderosos internacionais, que atuam
por meio de jagunços nacionais.
Pior, a sua referência de falso senso de oportunidade
choca por estabelecer nexos irreais entre um senador atual, preso acusado de
atrapalhar investigações, com toda a força da esperança de um povo.
Cármen Lúcia, desta vez, nada comentou.
Argumentou posteriormente, numa entrevista para TV,
que a declaração saiu depois de ter ficado estarrecida com gravações onde o
então senador fazia ilações sobre a possibilidade de conseguir apoio de
ministros do tribunal num provável julgamento.
“Não se faz favor usando a toga”, declarou, para
acrescentar:
“Estou há dez anos no Supremo e nunca veio ninguém
falar comigo sobre algum processo, nunca recebi nenhuma proposta indecorosa.
Não sei se por causa do meu jeito, mas comigo isto nunca aconteceu”.
No dia em que foi confirmada pelo plenário como
substituta do ministro Ricardo Lewandowski para o próximo biênio do STF, a
ministra protagonizou outra polêmica, ao dizer que gostaria de ser chamada de
“presidente” e não “presidenta”, porque “fui estudante e sou amante da língua
portuguesa”, numa referência à presidenta afastada da República, Dilma
Rousseff.
Desagradou desde militantes e simpatizantes petistas ao ex-ministro
da Educação do governo Dilma, Renato Janine Ribeiro, que citou um conterrâneo
dela, Carlos Drummond de Andrade, como alguém que defendia o termo “presidenta”
para alfinetá-la.
“Gosto da ministra Cármen Lucia, mas, entre o
português dela e o de Carlos Drummond de Andrade, fico com o do poeta que, na
sua tradução de Choderlos de Laclos, usa ‘presidenta’ sem nenhum problema.
Observação: eu prefiro usar presidente, mas respeito Drummond, um de nossos
maiores escritores”, afirmou o ex-ministro.
“Acusar quem usa presidenta de ignorante é, isso sim,
ignorância. Mas cada um usa a que prefira.
Livre para Dilma, livre para Cármen, acrescentou.
Também nada foi respondido pela magistrada.
O professor de português Pasquale Cipro Neto também
criticou a postura e a entonação da magistrada. Em artigo intitulado “Data vênia,
Excelência, o cargo é de presidente ou presidenta”, Pasquale argumenta:
“O que não se pode, de jeito nenhum, é ditar ‘regras’ lingüísticas
totalmente desprovidas de fundamento técnico, mas foi justamente isso o que
mais se viu/ouviu/leu desde que Dilma manifestou a sua preferência por
‘presidenta’, forma que não foi inventada por ela”.
O colunista lembra que o termo “presidenta” está
registrado na edição de 1913 do dicionário de Cândido de Figueiredo, como
“neologismo”. “Edição de 1939 do Vocabulário Ortográfico registra o termo.
A última edição de cada um dos nossos mais importantes
dicionários e a doVocabulário Ortográfico também registram”, anotou Pasquale.
Tempos quentes.
“Teremos tempos quentes pela frente”, disse o advogado
Ruben Antonio Furtado, com escritório em Brasília.
Em tom diplomático, ele evitou afirmar se os tempos
“quentes” serão quanto à administração ou aos julgamentos do tribunal, mas
ressaltou achar que o tom rigoroso da ministra terá prós e contras, embora a
certeza de que “desta vez, haverá uma magistrada preparada no comando da casa”.
A forma irônica de falar do advogado é uma comparação
implícita entre o estilo de Cármen Lúcia e o do ex-presidente do STF, Joaquim
Barbosa, que ao contrário dela e do atual presidente, Ricardo Lewandowski, era
considerado em reservado nos gabinetes do tribunal um magistrado que teve boas
notas nos concursos em que foi aprovado, mas, por outro lado, agia de forma
pouco atuante, com parco preparo jurídico e muitos processos acumulados.
Como pontos favoráveis da magistrada, Furtado cita seu
preparo intelectual e também desabafos célebres, conhecidos entre os servidores
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nos tempos em que a ministra presidiu o
órgão em 2012 que delineiam bem o seu perfil.
“Ninguém agüenta essa mulher”, esperneou um analista
judiciário que pediu transferência para o Superior Tribunal de Justiça (STJ),
na época.
A frase “ninguém agüenta” não disse respeito a cenas
de grosseria nem a falta de educação por parte de Cármen Lúcia. Mas sim, à alta
carga de trabalho imposta por ela. O que terminou sendo revertido em fator
positivo para a sua gestão.
No gabinete da ministra, são conhecidos os plantões
que costuma marcar com toda a equipe quando acha que está com processos de sua relatoria
atrasados.
Também ficou notória a história de um servidor que, durante um
destes plantões convocados para o TSE, chegou de bermuda e com hálito de quem
havia ingerido bebida alcoólica.
Foi sumariamente demitido dias depois, mesmo exercendo
um cargo de confiança.
Por ser tido como servidor exemplar, que tinha
assessorado vários antecessores da presidência do tribunal e não tinha a
obrigação de trabalhar naquele plantão, outros ministros pediram para que
tivesse suspensão mais branda.
Não adiantou. Cármen Lúcia não admitiu mais tê-lo como
subordinado.
“Todos que trabalham com ela gostam, sabem que
estimula os seus servidores a fazerem concurso e a melhorarem na carreira, mas
por outro lado é preciso saber entrar no ritmo dela”, contou Fernanda Soares,
uma técnica legislativa que ficou lotada no gabinete de Cármen Lúcia, num dos
primeiros anos após a ministra tomar posse, e diz admirar seu estilo.
No início deste ano, o pai da ministra, Florival
Antunes Rocha, 98 anos, desistiu de uma ação sobre expurgos dos planos
econômicos para que a filha pudesse participar do julgamento sobre o tema, que
está parado há mais de dois anos no STF.
Florival tinha poupança na época da inflação, quando
perdeu dinheiro com esses planos.
Mas como o caso entrou no rol do instrumento de
repercussão geral segundo o qual a decisão do Supremo a respeito passará a
valer para todas as outras nos tribunais do país a demora para entrar na pauta
do tribunal estava atrapalhando a vida de milhões de brasileiros.
O caso é considerado, de longe, o maior nas mãos do
STF, com potencial de perda de até R$ 150 bilhões para os bancos e repercussão
sobre mais de 800 mil processos em andamento no país.
O imbróglio todo se dava porque também tinham se
declarado impedidos do julgamento os ministros Edson Fachin, Luiz Barroso e
Luiz Fux.
E com Cármen Lúcia também impedida, por causa do pai, não havia
quórum suficiente no tribunal.
A atitude da ministra rendeu-lhe elogios de entidades
de defesa dos consumidores e impetrantes das ações sobre o caso.
Corporativismo e foco.
Posições de Cármen Lúcia sobre direitos e conquistas
das mulheres têm sido elogiadas.
Ela defende, por exemplo, que as presas sejam
retiradas poucas semanas antes de dar à luz de penitenciárias e delegacias para
que nenhuma criança filha de presidiária nasça na cadeia.
Também é favorável a leis mais rígidas sobre o estupro
e costuma fazer visitas aos presídios para ver a quantas anda o acompanhamento
da execução criminal no país.
A magistrada é considerada uma das poucas ministras
sem postura corporativista, embora já tenha atuado para defender direitos do
Judiciário e de atuar como uma leoa quando foca seu interesse em algum anseio
relacionado à carreira.
Teria sido assim, conforme a versão de alguns
políticos e magistrados de Minas Gerais, quando decidiu se articular para
conseguir uma vaga no STF.
Uma advogada aposentada, ex-mulher do dono de um
conhecido escritório de direito tributário com sedes em São Paulo e Brasília,
contou que Cármen começou a campanha para ser ministra do STF décadas antes e
construiu toda uma trajetória política para isso, desde o governo de Itamar
Franco em Minas Gerais período em que foi procuradora no Estado.
“Ela sabia que poderia existir uma oportunidade e
começou a se esforçar para ser convidada para eventos jurídicos, participar de
todos os jantares de membros da Corte e encontrar os mais diversos motivos para
vir a Brasília e conversar com ministros.
Tornou-se íntima de muitos deles e não escondia que
estava no páreo para alguma indicação, ressaltou.
Em sua defesa, o jurista Dalmo Dallari, assim que
soube da decisão da Corte de tê-la como a nova presidente, se manifestou. “Ela
é brilhante. É uma juíza independente, de honestidade absoluta e com enorme
sensibilidade constitucional.”
Em relação às suas decisões no Supremo, foi a única
integrante do colegiado, ao lado do ministro Joaquim Barbosa, em 2011, que
votou a favor da constitucionalidade total da Lei da Ficha Limpa.
Foi uma das primeiras a criticar a prática do caixa 2
e a dizer que se trata de um crime, no colegiado, durante uma sessão.
Além disso, é da opinião que não cabe ao Judiciário
controlar o poder do Estado de intervir na economia, frase que já repetiu diversas
vezes.
Quando questionada sobre o fato de ser correto o
magistrado ter ou não opinião política, ela tem sido dúbia.
Diz que não acha correto, mas que considera possível
ao julgador ter, sim, uma “visão de mundo” e que a seu ver, o que muitos
entendem como posição política muitas vezes é, no seu entendimento, a expressão
de sua “visão do mundo”.
Cármen Lúcia teve votos considerados contraditórios
entre ativistas do direito humano à justiça.
Por exemplo, votou favorável à prisão de réus já nas
condenações em segunda instância e sem que a sentença tenha sido considerada
transitada em julgado (tema que ainda é objeto de julgamento final no STF) o
que para muitos afronta o direito de defesa, vai prejudicar os mais pobres e
agravar a situação de casas de detenção.
Por outro lado, votou pela autorização do aborto em
caso de fetos anencéfalos, das pesquisas com células tronco, da união estável
entre homossexuais e da adoção de crianças por homossexuais, entre outros
casos.
“Minha grande briga sempre foi para que as pessoas
tenham respeitados seus direitos, até por eu vir das Gerais, uma região onde as
pessoas precisaram brigar demais para conseguir sobreviver”, já afirmou.
Outra característica de sua atuação enquanto
magistrada é a defesa da tese, levantada por um dos decanos da Corte, Marco
Aurélio de Mello, de que não adianta se exasperar durante os votos nas sessões
porque “ninguém convence ninguém nos debates durante as sessões”.
Relatora da ação polêmica sobre o direito à publicação
de biografias mesmo quando não autorizadas pelos biografados, ela considerou e
foi acatada pelos pares que apesar do argumento do Código Civil de que “a vida
privada da pessoa natural é inviolável”, a exigência de autorização prévia para
a publicação de qualquer obra se configura em censura.
E lembrou que a Constituição garante “o direito ao
acesso à informação e à liberdade de expressão”.
Chamou a atenção, no julgamento, por incluir no voto
mais um dos seus trocadilhos, ao escrever e repetir publicamente: “Cala a boca
já morreu”.
Fica presente o temor de que o STF passe a ser
comandado por uma ministra que nem sempre relativiza os dois lados (no caso dos
embates que envolvam políticos), demonstra ser pouco paciente com os
subordinados que saiam dos trilhos e mais rigorosa do que o normal na aplicação
da lei.
Se isto será bom ou não para o país, falta pouco tempo para os
brasileiros saberem.
Frases:
“O direito é
um agente de libertação permanente”
“Não há nada
que ligue o ministro do Supremo a quem o indicou para o cargo porque a toga não
é desse ministro, é do Brasil. O STF não se acovarda e a prova disso está nas
decisões do colegiado”
“O juiz tem
suas visões de mundo. Não são opções políticas, costumo dizer que são visões de
mundo”
“A função do
juiz é dificílima. A sensação de lidar com a injustiça é um sofrimento”
“Quem ganha,
festeja; quem perde, reclama”
“Não basta
aplicar o Direito: é indispensável ouvir a sociedade para entender a razão dos
descontentamentos”
“Houve um
tempo em que a esperança venceu o medo (…) Depois o escárnio venceu o cinismo
(…) Agora não se pode deixar que o cinismo e a impunidade vençam a Justiça”
“Defendo que
seja debatida a questão de um mandato para os ministros do Supremo. Sou
favorável a isso e acho que o tema precisa ser muito bem discutido”
“O Brasil tem
muitas humanidades. Temos a pessoa que precisa andar dez dias para chegar a um
posto de saúde e a pessoa que vai diariamente para o trabalho de helicóptero”
“Não demonizo
a política, acho importantíssima a política. É a política ou a guerra. Sou de
uma geração que lutou para eleger desde os presidentes dos diretórios
acadêmicos das faculdades até os prefeitos, governadores e presidentes”
“Desacreditar
as instituições não conduz a melhoria para a sociedade. Tem de se julgar cada
caso, dando o devido direito de defesa para se decidir da melhor forma”
Fonte: O Estadão.
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