Em Nova Russas,
Soares Feitosa, dito
Chico José, "filho do
padre", naquele tempo.
Os órfãos
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Primeiro, foi o Marcelo. De nossa idade, entre os
14 e os 15. Digo nossa idade, e já falarei dos meninos que moravam na casa do
padre. Marcelo viera passar uns dias em Nova Russas, férias, a convite do padre
coadjutor, Maurício, colega de seminário do irmão dele, padre Moacir Leite.
Marcelo era rico: as camisas de seda, os sapatos em verniz e bico fino. Nossas
cuecas eram um samba-canção em algodãozinho amarelado; as dele, em cambraia de
linho, com um M finamente
bordado em relevo, como se fosse um brasão. Rico, o Marcelo; distinto, porém.
Ele nos mostrava a revista O Cruzeiro, que
trazia a propaganda da Rural Willys — o carro mais moderno e luxuoso da época
—, e nos dizia que o pai tinha uma igualzinha. Metia-lhe as marchas no
espaldar da cadeira de balanço e lhe imitava ronco e buzina, deixando-nos
embasbacados com o olhar das meninas — ele dizia como era — a ele, em carrão
tão bonito. Invejávamo-lo, nós, no máximo, em nossas bicicletas de aluguel, do
Zé Carrilho, quando uns trocados tínhamos, para paquera e desembesto.
O telegrama de que o pai... em súbito, a mão no
peito. E que o pai, parece que era João, deixara um filho por nascer ou recém
nascido, não lembro direito. Embarcamos o Marcelo às exéquias, não lembro se de
avião ou de carro particular, que de trem demorado, não. Acho que de avião,
deve ter sido.
Depois, vieram as crianças aterrorizadas e uma mãe
de sofrimento. Todos de preto, um preto grave, grego — ou siciliano, calabrês?
—, desembarcados de uma tragédia em Novo Oriente. A saia da mulher era
comprida, as mangas compridas, os cabelos compridos, que ela os amarrava num
cocó no alto da cabeça — tudo em preto. Também em preto fechado, as calças
curtas dos meninos e as camisas de mangas compridas. As alpercatas também eram
pretas. Os dois meninos, alvos como uma tapioca. A mãe, curtida de sol, mas
também muito alva. Eles não largavam da mãe.
Nem tivemos, maiores que éramos, o que conversar
com aquelas crianças tão assombradas. Brancos, de uma palidez destoante do fogo
do sertão, pleno de sol, seca do ano de 1958, e o contraste do luto fechado,
denso, em roupa e terror. Dona Maria, a mãe, a viúva, era irmã do padre. Os
meninos: Juarez e Baíca. O pai, João Belo, poucos dias antes, puro entusiasmo,
nos contara, ali mesmo na casa do padre, que as eleições estavam ganhas e que
ele seria o prefeito e o coronel Virgílio Távora o governador. Virgílio perdeu
para o Parsifal Barroso, e ele, João Belo, antes de eleger-se prefeito,
sangraram-no.
Nunca mais vi — nem notícias, e bem que gostaria —
o jovem Marcelo. Dos dois pequenos órfãos, um é o poeta Juarez Leitão, o
maiorzinho; o outro, chamavam-no Baíca, médico em Crateús, morto em acidente de
carro. Dia destes, eu e o Juarez rememorávamos um monte daqueles dias, e ele
pranteava o irmão, ensopando com os olhos a camisa do falecido. Mesmo assim o
vinho estava delicioso, o queijo rangedor, dos coalhos de sol e sal dos sertões
do Quixadá, terra da esposa do Juarez, a Maria. "Uma delícia, Maria, este
queijo!", gritei bem alto. Ela disse que o coalho era de mocó, um rato
selvagem, cujo coalho produz o queijo mais saboroso destes sertões, Nordeste.
"Bote outra, poeta", disse o Juarez. Botei. E choramos e cantamos
todos os nossos mortos.
Abro uma pausa para falar dos outros meninos que
habitavam a casa do padre, naquele tempo. Sucessivas levas de meninos pobres se
renovavam ali. Sou de uma leva intermediária, 1958, 15 anos, recém saído do
Seminário de Sobral (expulso, por desavença política de minha mãe com o
vigário, Padre Inácio, de minha terra, Monsenhor Tabosa); mais o José Pires,
14, de Independência, filho do coronel Moisés Pires; mais o Gerardo, 15, irmão
dos pequenos órfãos; mais o José Maria, uns 14 anos, um baixinho entroncado e
forte como garrote pé-duro, um "matuto muito brabo", do Ararendá,
pegador de queda de braço — mas perdia pra mim, que, na minha idade, me
pabulava campeão.
Sou sobrinho do padre. Sobrinho vírgula, porque
chamávamos nossos primos mais velhos de tios. Meu parentesco com o padre é
assim: o pai dele, irmão de minha avó e primo de meu avô, ambos pelo lado
materno, todos da maloca dos Soares, sertões de Independência, com ramificações
em Pedra Branca, desde lá até hoje.
Claro que vou desvirtuar um pouco este artiguete
fúnebre, para não ficar só em coisas tristes. Mesmo porque a presença do padre
tio irradiava muita alegria, gargalhadas até, duma boa anedota, nunca picante,
mas de fino humor. Tanto ele gostava de contar como de ouvir, com o seu
indefectível "Olhe aqui!". "Estou olhando, padre",
respondia-lhe eu, mas só nos tempos recentes, e com todo o respeito (sempre lhe
tomei a benção, sempre o chamei de senhor). A história que conto agora também
não deixa de ser uma orfandade.
Abro um parêntese: Era uma vez a noite e suas
surpresas. Eu nem sabia que o Antônio tinha irmã. Tinha, sim. Quando ela surge
à sala de janta da casa do padre, como uma janela súbita que se abre ao sol,
não sei de onde saíra, 14 anos, talvez vindo da bênção que há pouco terminara.
Lembro-lhe, tantos tempos agora, as roupas, os lábios marcados de batom
vermelho, talvez escondido (que quase tudo naquele tempo eram coisas
escondidas), uma blusa ban-lon
em verde escuro, o contraste do muito claro, e..., os cabelos molhados. Ah, meu
Deus, os cabelos molhados... Como se fossem dos mesmos que acabam de me invadir
o poema O Prisioneiro... — quem saberia o que eles me teriam agora a
ver?!
Bem que eu poderia aqui citar o Rimbaud para falar
da beleza surpreendida. Não, não, deixemos quieto o grande Arthur, porque ali,
naquele instante, tão distante, se paraíso houver, do alto daqueles meus 15
anos, digo agora que vi o paraíso. Se era cruel, como na beleza vista por
Rimbaud? Sim, certamente o foi, cruel. Aquela visão — isto mesmo, como se
fosse, e era, uma alucinação — busco-a permanentemente, como também busco
aquela clarinada que se ouvia nas manhãs festivas do Seminário, raros dias
daquele quase monastério em que o silêncio obrigatório era rompido às fanfarras
do acordar com música, festa, folguedos e feriado.
Que música era? Que alboradas?
Que jovem-quem teria sido a daquela noite?
Por décadas já me rondei às centenas e centenas de
perfis & silhouettes. Que também me rondei por quase todos os
clássicos possíveis e imaginários; por todas as fanfarras d'Espanha, e nunca
pude reencontrar a música da manhã alvíssima de Sobral... Nem jamais me caí por
terra, como Paulo, à face da Beleza, como se àquela jovenzinha e seus cabelos
molhados de mulher infância.
O que há de me ter sobrado de tanta orfandade, em
sons e fácies?
Certamente que perdas tão pesadas é que nos tangem
à busca do Inatingível, em Sua estética suprema, que d'Ele órfãos..., em
caminhos ásperos, testemunhas e esquecidos.
Fechado o parêntese, retornemos aos órfãos
verdadeiros. Não tenho certeza se era Confiança ou Pilar, do Recife, porque a
Richestter, daqui, ainda não produzia os famosos biscoitos de lata. A lata
ficava em cima da estante de livros, e na estante, fechada de vidro e chave, o
dicionário Lello Universal, de que cuido no poema Padre-mestre. A
estante ficava por trás da rede do padre, com seu mosquiteiro, como se fosse
aquele conjunto branco, diuturnamente armado — rede e mosquiteiro brancos — o
véu de um altar simbolicamente intransponível ao mais afoito dos meninos que,
tentado pelo demônio, resolvesse fazer uma investida àqueles biscoitos.
Como se fossem as cinzas dos ancestrais, o fogo
sagrado, os ícones da raça: aqueles biscoitos que o pai do
padre lhe dera num aniversário que não sei qual, que o tempo é cruel e escrevo
apenas de ouvido. O padre não abrira, de imediato, a lata de biscoitos. Num
piscar de olhos, o telegrama. E a lata ali ficou, em cima daquela estante,
lápide e memória do pai, Leônidas.
Tenho, sim, patente múltipla de orfandades. A
primeira, tragédia maior, no dia em que nasci, o pai, Francisco, o meu; e esta
outra, recente, bem recente, como se fosse agora mesmo, porque sempre presente,
aqui, in pectore: o padre, também Francisco, o outro.
Assinado: Francisco
Prefaciado
pelo acadêmico Juarez Leitão.
*SOARES
FEITOSA – AGREADO AO TORRÃO - RESIDENTE EM SÃO PAULO – SP.
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