SECA FAZ
EMERGIR CIDADE INUNDADA POR AÇUDE NO CEARÁ
Lembranças
de moradores afloram com postes e árvores
Depois de 45 minutos de barco,
surgem as pontas dos postes de luz, vestígios da velha Jaguaribara. Inundada em
2001 pelo Açude Castanhão, é a primeira vez que as partes altas da antiga
cidade de 9 mil habitantes emergem, em consequência de uma das maiores secas da
história, que reduziu à metade o volume do reservatório. A caixa d'água
destruída e o obelisco do herói emancipacionista Tristão Gonçalves também
ressurgem - e, com eles, a tristeza e a revolta de uma população arrancada à
força de seu lugar, para o qual jamais poderá voltar. Lívia Barreto, de 31
anos, secretária-executiva de Pesca e Aquicultura da nova Jaguaribara, erguida
a 55 km dali, acompanha o repórter e o fotógrafo do Estado até a cidade onde
passou a infância e a adolescência. Ou melhor, até a superfície tranquila do
açude, que está hoje 4 metros mais baixa do que há um ano. "Todos nós
temos a lembrança da aula de campo sobre como foi a morte de Tristão
Gonçalves", diz ela, ao lado do monumento de bronze. "Quando tínhamos
mais ou menos 8 anos, a professora nos trazia aqui e dava essa aula." As
tropas do império fuzilaram Tristão e penduraram seu corpo em uma árvore em
1824, pondo fim à sua insurreição armada contra a cobrança de impostos e pela
criação da Confederação do Equador. "Aqueles postes ali estão marcando a
avenida da entrada da cidade", orienta-se Lívia. "Ali ficava o
cemitério. Mais para a frente, o hospital. Aqui é outra avenida paralela, onde
a gente tinha alguns comércios, açougue, algumas casas." O piloto do
barco, Gil Queiroz, aponta para onde passava o Jaguaribe. "Eu morava
próximo do rio, da ponte molhada", recorda Lívia. "Tinha umas pedras
ao redor e a água passava por cima. Formavam-se umas cachoeirinhas. A gente ficava
tomando banho ali onde fazia as poças junto com as pedras. Cada turminha tinha
seu ponto para tomar banho." Debaixo da ponte havia tubos, que os mais
corajosos atravessavam mergulhando. A Pedra dos Três Dedos e nove poços, para
nadar e pescar, completavam o lazer. O Jaguaribe, afogado pela confluência de
outros três rios desviados, era a alma da cidade. Ele passa a 10 minutos de
carro de distância da cidade planejada construída para abrigar a população, mas
isso faz uma diferença brutal para os moradores, a imensa maioria sem carro.
Todos se lembram de Antonio de Anália, um rapaz com Síndrome de Down que tomava
banho todos os dias no rio. Depois da transferência da cidade, seus pais
passaram a obrigá-lo a tomar banho de chuveiro. "Não quero ficar em São
Paulo", dizia o rapaz, pensando que tinha ido para a cidade grande que
atraía os jaguaribanos em busca de uma vida "melhor". "Quero
voltar para Jaguaribara." Antonio "morreu de tristeza", contam
os moradores, assim como alguns idosos, que pararam de se alimentar depois da
mudança. "Minhas lembranças são de uma colônia de férias, onde todo mundo
era amigo: as crianças, os pais", descreve Lívia, chorando. "A gente
tinha um convívio, uma liberdade de brincar na rua, de explorar a cidade. A
gente andava de bicicleta em quase toda a cidade, que era pequenininha." A
nova Jaguaribara coincide com a antiga apenas no nome. Cidade planejada, ela
foi dimensionada para 70 mil habitantes, porque os políticos e técnicos achavam
que as atividades geradas pelo açude - piscicultura, turismo de pesca esportiva
e agropecuária irrigada - atrairiam 60 mil novos moradores. Indenização. Cerca
de metade dos nove mil jaguaribanos recebeu a indenização e foi embora para
cidades vizinhas, Fortaleza e São Paulo. Apenas 6 mil pessoas de outros lugares
- um décimo do previsto - vieram instalar-se na nova cidade. Longas e largas
avenidas, com ilhas delimitadas por meios-fios, dão voltas ao redor de imensas
áreas vazias. Para evitar essas distâncias artificiais, em vez de retornar nas
grandes rotatórias, motoristas dirigem na contramão, transformando as pistas em
mãos duplas. O movimento é tão pequeno que isso não causa risco. "A praça
principal era onde tudo acontecia, todo mundo ia para as festas, ia passear à
noite", continua Lívia. "Era cidade boa, tranquila, não tinha brigas,
violência, as pessoas dormiam com as portas escoradas, as janelas
abertas." As casas eram emendadas, parede contra parede, e os vizinhos se
comunicavam apenas falando mais alto, sem sair de casa. "As cadeiras
ficavam nas calçadas e as famílias esperavam até os filhos voltarem da
escola." O barco segue e vão aparecendo as copas de árvores ressequidas.
Lívia reconhece o pé de algarobas do quintal de sua avó, onde ela brincava com
seus três irmãos e os primos. "A árvore dos camaleões" exclama ela,
abraçando-se ao tronco. Ela conta que esses lagartos cobriam a árvore e as
crianças gostavam de se juntar ali no fim da tarde. Além das algarobas, outra
árvore típica de Jaguaribara eram as acácias. Praticamente não existem essas
árvores na cidade nova. Foram substituídas pelo nim da Índia, uma árvore
exótica, sem relação com a história do lugar, mas que cresce depressa. "As
acácias e algarobas demoram a crescer", constata Lívia. Os laços das
pessoas com um lugar, também.
Fonte: O Estadão.
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