COMENTÁRIO
Scarcela Jorge
CONSERVADORISMO
EVIDENTE
Nobres:
Reações contrárias à nomeação do
deputado Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão de Direitos
Humanos e Minorias (CDHM) dão a entender que a laïcité do Estado brasileiro
está em perigo. É preciso, então, perguntar-se sobre qual a real razão das manifestações,
e se estamos testemunhando uma ameaça ao Estado laico. A escolha de Feliciano
não ganhou destaque apenas pelo fato de ele ser um pastor. Desde 2011, o
deputado ficou famoso por ter feito declarações polêmicas e ofensivas, algumas
delas objeto de investigação judicial. No entanto, elas não parecem ser a causa
real da indignação, e sim suas posições em questões morais. Um exercício
contrafactual tornaria claro que qualquer outro deputado religioso que se
posicionasse reiteradamente contra o casamento homossexual e o aborto e
assumisse a CDHM seria hostilizado. Tais posições não são vistas apenas como
preconceito, senão também como afronta ao Estado secular. Mas há nesse episódio
alguma ameaça real ao Estado laico ou secular? A resposta a esta pergunta
depende do que se entende por esses adjetivos. A compreensão de “secularismo”
ou “laicidade” implícita nas manifestações contrárias a Feliciano parece ser a
de um credo político arreligioso que não tolera que tradições religiosas
participem da esfera pública. Essa compreensão supõe que doutrinas não
religiosa seriam capazes de resolver questões político-morais de modo a
convencer qualquer pessoa honesta, e que doutrinas religiosas só poderiam
convencer quem já aceitou o dogma religioso. Isso é claro nas manifestações dos
grupos contrários a Feliciano. Para eles, as posições contrárias ao casamento
homossexual e ao aborto estariam fundamentadas apenas em verdades reveladas,
sendo ilegítimas no debate político. Todavia, a Igreja Católica e muitas igrejas
cristãs não precisam basear suas posições na revelação. A defesa da vida e do
casamento feita por elas se fundamenta na razão. A defesa da exclusão das
doutrinas religiosas do debate público é, pois, feita com argumentos
equivocados. Poderíamos ir além e afirmar que doutrinas religiosas estão tão ou
mais preparadas para a defesa dos direitos humanos que o não religioso. Dado o
caráter secularizado e pluralista da política moderna, a justificação política
dos direitos humanos é uma necessidade. Porém, o pluralismo necessita de
fundações que não são elas mesmas pluralistas ou meramente políticas, e que se
baseiam em firmes recursos morais. Esses recursos estão profundamente
relacionados com convicções religiosas. Vários filósofos estimam o secularismo
não diz respeito à relação entre Estado e religião, e sim à resposta correta do
Estado democrático à diversidade. Nesse sentido, o secularismo envolve a busca
por dois objetivos: liberdade para exercer e escolher qualquer tipo de religião
– ou nenhuma delas; e respeito às diferentes tradições religiosas e não
religiosas no debate público. O episódio da eleição de Feliciano expõe a
concepção restrita de Estado secular de parte da opinião pública brasileira.
Talvez esteja na hora de lutarmos por uma concepção mais razoável de Estado
secular, uma que entenda secularização como respeito às diferenças, e não como
a simples exclusão das tradições religiosas do debate público.
Antônio Scarcela Jorge.
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