COMENTÁRIO
SCARCELA JORGE
“CRISE DA HUMANIDADE”
A renúncia de Bento XVI abriu a
porteira para profetismos tolos. Fala-se do “mal-estar das instituições”. É uma
meia- verdade. Igreja, família, imprensa, escola resistem a um modelo de mundo
corroído e sem projeto.
Nobres:
Na semana
passada, o mundo viu surgir, súbito, uma legião de vaticanistas, sociólogos e
antropólogos da religião, profetas do fim do catolicismo. Como que num mercado
de peixes, fizeram um alarido próprio para esses tempos regidos pela instantaneidade
das redes sociais. Seria engraçado, não fosse trágico. O “imaginário da crise”
– forjado agora em torno da renúncia do papa Bento XVI, mas ontem ou anteontem
ao redor de qualquer assunto da hora – só vem confirmar a incapacidade
epidêmica de pensar o mundo como fenômeno, e não apenas como fato. Essa crise; a
do pensamento, é muito maior que todas as outras. E, para desalento geral, tem
raízes profundas, que não neutralizaremos apenas com o botão do “curtir”, ou
algo que valha. Vivemos, com todas as letras, tempo de desamparo profundo, o
desamparo próprio do individualismo, ao qual nos abraçamos como que a um copo
de veneno. Ele nos mata em gotas. E impede de entender o tempo e a história
para além das nossas divisas umbilicais. Se há crise, essa é de valores. É mais
grave que mísseis ou catástrofes climáticas. O ponto em que nos encontramos é
de que o mundo esqueceu o passado e perdeu de vista o que espera do futuro.
Ora, foi sobre essas duas condições que se consolidou o que chamamos de modernidade.
Procurávamos um destino comum, ao qual balizávamos com o que vinha antes e o
que viria depois. Sem essa dialética, o presente vale por si mesmo, o que
redunda numa tremenda cilada. - Tudo pode-. As razões de foro íntimo se
sobrepõem às razões morais, reiterando o que Richard Sennett chamou de “o
declínio do homem público”. Tanto a naturalidade extrema quanto a percepção
epidérmica da vida se colocam contra a cultura, sem a qual nos vemos entregues
à nossa própria miséria. E não estamos longe disso. Deixamos de crer na
política como caminho para pactuar a convivência com o outro. Aceitamos
relações sociais que nascem e morrem como as moscas. As explicações sobre toda
e qualquer coisa são dadas pela técnica, em detrimento das humanidades e mesmo
da teologia. Seguimos nos contentando com a abstração, o efeito, o impacto.
Serão passageiros, como no mais, o resto. Assim, não caminha a humanidade. Essa
ética “presentificada”, que acaba onde começa, impede a sociedade de fazer
projetos. E, sem projetos, resta a indiferença – com folga o pior dos atentados
ao mundo civilizado. Pode haver quem se pergunte o que o vazio existencial da
pós-modernidade tem a ver com o barulho de bateria de escola de samba criado em
torno da renúncia do papa Bento XVI. A resposta, obviamente, não pode ser
encontrada em meio às toneladas de fogos de artifício soltas nos últimos dias,
posto que turvem a visão. É preciso ir além. E ir além dói. A propalada crise
da qual tanto se fala quando o assunto é a Igreja tem obviamente suas
peculiaridades. O Vaticano virou vidraça mais de uma vez. Mas, vista de maneira
isolada, a situação fica distorcida. Os dilemas que assolam a Igreja antes de
tudo assolam a própria sociedade. O discurso da universalidade – sentido
próprio, inclusive, da palavra “católica” – diluiu-se no que muitos chamam de “virada
subjetiva”, o “show do eu” em que nos metemos, achando que aí residia o futuro.
Não nos vemos mais como parte de um grande projeto comum – de cidade, de
convivência, de moralidade –, preferindo um espetáculo solo. Ser humano não é
mais ser igual, é ser diferente, habitar pequenos cosmos, estar aquém. Ao
resistir a esse manifesto suicida, a Igreja se vê pressionada a adotar
doutrinas confortáveis e narcisistas. Esse é um questionamento comum em relação
a artifícios jamais poderá. A crise social que recai sobre a Igreja afeta do
mesmo modo outras instituições. O relativismo que grassa por aí atinge o
sentido da família, transformada em um slogan de propaganda; a escola, que
tende a se converter num centro de treinamento ou num bunker de segurança; a
imprensa, rejeitada como comunidade interpretativa. Unanimemente vivenciamos
esta crise.
Antônio
Scarcela Jorge
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