COMENTÁRIO
Scarcela Jorge
ATRIBUTO DA INCULPAÇÃO
NOBRES:
Decorridos menos de um
mês da tragédia em Santa Maria, já é possível prever algumas conclusões que
sairão do inquérito policial. Ninguém acionou um gatilho, não há e dificilmente
aparecerá um responsável central, o grande vilão em cima do qual será
descarregado o luto federal. A indignação produzida pela soma de tantas
tragédias dificilmente encontrará um elemento isolado, capaz de converter-se em
bode expiatório único. Tudo indica que o grau de letalidade do episódio foi
produzido por um formidável encadeamento de ilícitos, incúrias e imprevidências
menores. A imperiosa catarse – se efetivamente acontecer – não terá uma
perversidade-mor para acioná-la. Este é o maior desafio que se oferece às
autoridades, às famílias enlutadas e àqueles cidadãos que, mesmo incólumes e
distantes, sentem- se igualmente intoxicados pela fumaça do incêndio. A rede de
ilegalidades, negligências e irresponsabilidades que convergiram para iniciar o
fogo e provocar tantas mortes compõe um retrato administrativo do Brasil,
tantas as esferas que nela se incorporam. A última foi revelada ontem, quando
Anthony Wong, diretor do Centro de Assistência Toxicológica do Hospital das
Clínicas de São Paulo, denunciou como “descaso e ignorância” o fato de não
fabricarmos no país o antídoto ao gás cianeto (o mesmo usado pelos nazistas nos
campos de extermínio) e não prepararmos médicos e socorristas para usá-lo em
emergências. O medicamento teve de ser importado às pressas dos EUA e só chegou
uma semana depois, embora a hidroxicobalomina seja uma substância relativamente
barata (faz parte do complexo B) e em muitos países sua fabricação seja
custeada pelo Estado. Quantas vítimas levadas aos hospitais gaúchos acabaram
morrendo por falta do antídoto e do treinamento para aplicá-lo? O denunciante
falou em “ignorância” e se absteve de qualificá-la penalmente: - ignorância
dolosa ou culposa-? Um dos donos da boate está preso, seriamente enredado no
inquérito; assim também o responsável pela banda, que preferiu comprar um
artefato pirotécnico barato e altamente inflamável. Logo se chegará à firma que
fez o isolamento acústico do imóvel com materiais de fácil combustão, ao
contrário do exigido pelos protocolos. Os bombeiros fizeram o que podiam na
fatídica madrugada, mas quantos bombeiros aposentados organizam-se em
empresas-laranja para facilitar o licenciamento de obras? Qual o papel do
submundo da fiscalização espalhado pelo país e mantido pela criminosa religião
de criar dificuldades para vender facilidades? E a Doutrina Geral da Impunidade, o Princípio
Elementar do Corporativismo e o Código Nacional da Corrupção, há anos nas
manchetes, porventura não inspiraram as malfeitorias que produziram a chacina?
Para que servem os vereadores além de passar o dia cuidando de ampliar os seus
privilégios? Magistrados só devem estar presos aos processos que lhes são
entregues, o que fazem os corregedores e o Ministério Público? As associações
comerciais, uma das guildas mais tradicionais do Rio Grande do Sul, não
deveriam estabelecer padrões mais severos de serviço ao público? Um modelo de
negócio montado a partir da superlotação do estabelecimento, caso das boates,
danceterias e baladas; não é, em si, criminoso? A grande culpada é a monumental
indulgência com tantos e tão insignificantes réus. A retórica é de sempre,
amolda a cultura da impunidade e do “jeitinho brasileiro” - o Brasil é assim
mesmo - enquanto não mudar confiadas as futuras gerações.
Antônio Scarcela Jorge
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