(REPRESSÃO DO REGIME MILITAR (1964/85)
Os fichados do Dops:
primeiro marido da presidente Dilma participou de sequestro de avião
Morando hoje na Nicarágua, Cláudio Galeno de
Magalhães Linhares comenta registros de sua ficha no RS.
Reportagem de Zero Hora traz à
tona 4,6 mil fichas de "coleta e processamento de informações" do
Dops gaúcho, papéis que hoje estão sob a guarda do Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul. Nessa parte da reportagem, veja histórias de políticos e
militantes de oposição que aparecem no acervo.
Uma das mulheres mais poderosas
do planeta hoje, a presidente Dilma Rousseff não mereceu mais do que cinco
linhas nos arquivos do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) gaúcho.
Foi um mero apontamento em 14 de março de 1969 na ficha nº 25, classificando
Dilma como comunista e trotskista.
Ela não tinha atividade
subversiva no Rio Grande do Sul, e a informação parece servir mais como um
alerta. Mas o documento inclui uma observação adicional (que não faz parte da
biografia oficial da presidente no site do Planalto): "É esposa de Cláudio
Galeno de Magalhães Linhares". O fichado nº 24.
O cadastro de Galeno contém
apenas três tópicos datados de março de 1969, dezembro de 1971 e junho de 1972.
Um precário resumo da trajetória do homem que, além de influenciar a formação
político-ideológica de Dilma, foi protagonista de uma das mais ousadas ações da
esquerda armada na América Latina: o sequestro de um avião brasileiro levado do
Uruguai para Cuba.
— Estou surpreso com essa ficha.
Foi feita para encher linguiça, fabricada para efeitos de divulgação.
Seguramente, queimaram os arquivos verdadeiros. Em 1971, eu estava no Chile e
foi registrado que estava no Brasil — recorda Galeno, 71 anos, por telefone, da
Nicarágua, onde vive com a segunda mulher, Mayra, e as filhas.
Conhecido pelo codinome Lobato,
Galeno, mineiro de Ferros, um estudante de sociologia, repórter de jornal,
ex-preso político, vivia em Porto Alegre no final dos anos 1960. Caçado por
militares depois da prisão de companheiros da Colina (Comando de Libertação
Nacional), Galeno e Dilma foram obrigados a sumir de Belo Horizonte.
Desmancharam um casamento de dois anos registrado em cartório
Dilma tentava se esconder entre
Rio e São Paulo, e Galeno foi escalado para reforçar a luta contra a ditadura
em Porto Alegre. Com cabelo pintado de vermelho e sobrancelhas aparadas para
alterar a fisionomia, já não era mais Lobato. Usava documentos como Ivan ou
André — eram tantos nomes falsos que ele nem recorda.
Da fusão da Colina com a VPR,
nasceu a Vanguarda Armada Revolucionária, a Var-Palmares. E Galeno era um dos
coordenadores do grupo no Estado. Passou alguns dias na casa do companheiro
Luiz Heron Araújo, irmão de Carlos Araújo — o segundo marido de Dilma — , e
também no aparelho da Var-Palmares, montado em um apartamento no bairro Menino
Deus, acolhido pelo líder estudantil Calino Pacheco.
— Se não me engano, era o mesmo
prédio ou no edifício ao lado de onde os militantes do Uruguai tinham um
aparelho e depois foram sequestrados, a Lílian Celiberti e o Universindo Díaz —
conta Calino.
Galeno ficou pouco tempo ali. Mudou-se
para o Centro, em uma pensão na Rua Pinto Bandeira.
— Era de uma senhora italiana,
viúva, que tinha uma casa grande e alugava quartos na parte de cima. Morou ali
Raul Ellwanger, que foi para o Rio e me deixou a vaga, e Fernando Pimentel (atual
ministro do Desenvolvimento). Era uma pensão com certo pedigree — diz.
Galeno parecia esquecido pelo
militares no Rio Grande do Sul. Chegou a passear pelo Interior, como no
feriadão de Páscoa em 1969. Mas no Rio, a situação era tensa para a
Var-Palmares. Envolvidos em assaltos, dois militantes, Fausto Machado Freire e
Marco Antonio Meyer, tinham desaparecido. Na verdade, presos, mas sem
confirmação. A Var-Palmares decidiu sequestrar um avião.
— Exército, Marinha, Dops,
polícia, ninguém dava notícias deles. Estavam ameaçados de morte. O sequestro
foi uma maneira de denunciar a prisão deles e exigir que os familiares pudessem
vê-los — diz Galeno.
Ele, o líder estudantil mineiro
Athos Magnus Costa e Silva, a psicóloga alemã Isolde Sommer, que vivia no Rio,
e Luiz Alberto Silva viajaram para o Uruguai. Em carros separados, levaram
Marília Guimarães, a mulher de Freire, e os dois filhos pequenos do casal.
Em Montevidéu, se juntaram a
James Allen da Luz, ex-estudante de Medicina de Goiás que vivia exilado lá
havia quatro anos. No começo da noite de 31 de dezembro de 1969, o grupo embarcou
como parte dos 21 passageiros do Caravelle da Cruzeiro do Sul, prefixo PP-PDZ,
que faria a rota Montevidéu- Porto Alegre-São Paulo-Rio. Era o início da
aventura.
Poucos minutos depois de a
aeronave decolar, James Allen da Luz se levantou, sacou uma pistola e anunciou
o sequestro, ordenando que o piloto desviasse o rumo em direção à Argentina.
— Foi tranquilo. Acalmamos a
todos, e o pessoal de bordo foi muito simpático. Viram que eram pessoas
educadas. Ninguém tinha cara de bandido. Para alguns passageiros, foi uma
grande aventura — garante Galeno.
Em Buenos Aires, dois idosos com
problemas cardíacos foram as únicas pessoas autorizadas a desembarcar. Com
autonomia limitada de combustível, o Caravelle seguiu da Argentina, parando
para reabastecer no Chile, depois no Peru — onde ficou quase dois dias por
causa de um problema de bateria — Panamá e, finalmente, Cuba.
Na escala em Lima, com o avião
cercado por policiais peruanos armados com metralhadoras, atraindo dezenas de
jornalistas, James, o líder do grupo, improvisou uma entrevista coletiva.
Garantiu que todos os sequestradores estavam armados com granadas de mão,
punhais e pistolas. Seria Galeno, que brincava com produtos explosivos quando
era criança na farmácia de manipulação do pai, o fabricante das bombas?
— Ninguém tinha bomba. Eram
pistolas e revólveres. Sou um homem de paz. Nunca fabriquei bombas. O que
aprendi foi fazer foguete junino — enfatiza.
O sequestro do Caravelle ganhou
destaque internacional. E, conforme Galeno, o governo brasileiro se viu forçado
a admitir a captura de Freire e Meyer, ainda vivos. Duas semanas depois, Dilma
foi presa em São Paulo.
— Na época, não tínhamos contato.
Ela não teve qualquer participação no sequestro — assegura o ex-marido da
presidente.
Dilma sairia da prisão no final
de 1972, se mudando tempo depois para Porto Alegre, onde se casou com o
advogado Carlos Araújo, que também estivera preso. Os dois já se conheciam de
um encontro de subversivos no Rio. Enquanto isso, Galeno vivia em Havana sob os
auspícios do regime de Fidel Castro:
— Alguns treinavam táticas de
guerrilha, outros não. Eu trabalhava em uma agência de notícias ligada ao
governo cubano, focada em denunciar prisões arbitrárias e torturas no Brasil. A
gente recebia casa e comida e um pequeno dispêndio para pequenos gastos, ir ao
cinema, comprar cigarro.
Nesse meio tempo, no Rio, Carlos
Lamarca liderou o sequestro do embaixador alemão Ehrenfried Von Holleben. Em
troca foram libertados 40 presos políticos, entre eles Freire e Meyer, levados
para a Argélia.
O plano era ficar um ano na ilha
caribenha, mas Galeno se mudou para o Chile. Lá se apaixonou pela nicaraguense
Mayra, sandinista desterrada pela ditadura de Anastácio Somoza. Em Santiago,
nasceu a primogênita do casal, Iara. Mas o golpe militar que derrubou o
presidente chileno Salvador Allende, em setembro de 1973, levou Galeno para o
Panamá, depois Bélgica, Itália e França.
Após a anistia, em 1979, Galeno
voltou a Belo Horizonte e aterrissou, mais uma vez, em Porto Alegre.
Precisamente na Rua General João Telles, no bairro Bom Fim. Trabalhava com
editoração de textos, em sociedade com amigos. No campo político, se
reaproximou de Dilma — desta vez, como amigos. Com ela, Araújo, Sereno Chaise e
outros velhos companheiros ajudou a refundar o PTB e depois a criar o PDT sob o
comando de Leonel Brizola.
O líder trabalhista foi eleito governador
no Rio, e Galeno seguiram atrás como assessor. O próximo destino foi a
Nicarágua, já sob o poder sandinista, para voltar em 2005 a Belo Horizonte e
ajudar na administração do então prefeito Fernando Pimentel, seu velho
conhecido nos tempos de pensão em Porto Alegre. Naquele tempo, Galeno costumava
ir a Brasília para conversar com a ex-mulher, superministra do então presidente
Lula. Aposentado, há três anos, ele se fixou em Manágua, onde presta assessoria
para organismos de imprensa. E garante:
— Sou meio gaúcho, leio Zero
Hora, escuto a Rádio Gaúcha. Acompanho tudo que se passa no Brasil.
Em 2011, Galeno fez questão de
voltar para a solenidade de posse de Dilma na Presidência. Sobre a
administração dela, é direto:
— Sou suspeito para dizer isso,
mas acho que ela faz um excelente governo.
ZH procurou a assessoria de
imprensa do Planalto para conversar com a presidente sobre os episódios
narrados na reportagem, mas não houve manifestação dela até sexta-feira.
Notórios sob vigilância.
Como chegam a milhares as fichas
do Dops, ZH pinçou, para esta reportagem, alguns entrevistados como modelo da
perseguição movida pelo regime a seus desafetos. Ficaram de fora das entrevistas
opositores notórios da ditadura, pelo simples fato de já existirem muitas
páginas escritas a respeito de suas trajetórias — redigidas por eles mesmos ou
por biógrafos. Confira alguns personagens históricos que estão fichados:
Dilma Rousseff — Fichada
com o sobrenome do primeiro marido, aparece como "Dilma Lana Rousseff
Linhares". Há, porém, dois erros na grafia no nome da presidente. O
correto é "Vana" e "Rousseff". Na ordem de prisão, de 1969,
é classificada como comunista e ligada a uma organização trotskista de Belo
Horizonte.
Leonel Brizola — A ficha
foi aberta em 3 de junho de 1964 e as últimas informações são de 26 de outubro
de 1967. Os primeiros dados tratam do comando exercido por ele sobre os Grupos
dos Onze (organizações populares). As demais informações já referem a pessoas
que fariam o papel de "pombo-correio", trazendo mensagens de Brizola
para os correligionários no Brasil. As últimas informações falam de
"esquema terrorista" armado por Brizola.
Luiz Carlos Prestes — O veterano líder comunista aparece na ficha do Dops gaúcho, em 1971,
como condenado a 14 anos de reclusão numa auditoria militar. Além disso, estava
foragido e era responsável pela reorganização do Partido Comunista Brasileiro.
Flávio Tavares — O
jornalista, colunista de ZH, escritor e ex-guerrilheiro Flávio Tavares aparece
como preso político banido pelo governo após o sequestro do embaixador
norte-americano Charles Elbrick. A ficha é de 7 de setembro de 1969.
Flavio Koutzii —
Ex-deputado estadual nos anos 2000, foi fichado em junho de 1972 com os
codinomes "Sancho Pança", "Laerte" ou "Gordo".
Estava com prisão preventiva decretada por uma auditoria militar, fundamentada
pela "periculosidade" e para garantia da ordem pública.
João Goulart — Anotada
a lápis na ficha de Jango, está a palavra "falecido". Mas o documento
começa com ele bem vivo, em 1967. Informa que seu governo teria sido
influenciado por militantes católicos a ter "orientação popular". Em
1968, Jango teria ordenado os correligionários das regiões dos rios Ijuí e
Ibicuí, próximo a Santa Maria, que estivessem "a postos para entrar em
ação dentro de pouco tempo".
Che Guevara — A ficha,
com data de 1967, relata que o líder comunista estava na Argentina após ter
passado pela Rússia e países africanos socialistas. Diz ainda que a mulher e as
duas filhas do guerrilheiro haviam sido levadas de Cuba para o México.
Papa Paulo VI — Há um
relato sobre a preocupação do religioso com o envolvimento do clero com
política. Diz que o papa "está vivamente alarmado ante o aspecto de
desordenada agitação" em setores da Igreja.
Fonte: ZERO HORA
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